RELATO DE OBSERVAÇÃO EM CONTEXTO, UM CAMINHO PARA UMA PRÁTICA DA DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA
RELATO DE OBSERVAÇÃO EM CONTEXTO, UM CAMINHO PARA UMA PRÁTICA DA DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA
As educadoras convidam um grupo de 6 crianças de 1 a 2 anos de idade, para irem ao espaço de ateliê da escola. Ao chegar, as crianças encontram latas de leite pintadas de branco, com tampa, em cima de uma grande mesa baixa. A educadora convida as crianças a olharem as latas:
Educadora – ‘’Olha o que temos em cima da mesa, latas!’’
As crianças começam a se organizar perto da mesa, umas sentam nas cadeiras baixas da mesa e outras permanecem em pé.
Educadora – ‘’Vamos pintar as latas?’’
A educadora começa a colocar pincéis sob a mesa, de diferentes formatos, como trinchas, batedores e rolinhos, depois começa a colocar tintas coloridas, em bacias pequenas, espalhando-as. A cada cor de tinta ou material colocado a educadora explica a sua ação.
Educadora – ‘’Uma trincha, um rolinho! Agora vou abrir a tinta azul e colocar na bacia. Quem vai querer pintar com essa cor?’’
As crianças começam a explorar a lata e os materiais expostos. Rolam a lata, batem com os pincéis, exploram as cerdas da trincha com as mãos.
Pedro pega uma lata e joga no chão. A lata faz barulho. Ele para, olha, se assusta e depois sorri. Em seguida, pega a lata do chão e a joga novamente. Os movimentos de Pedro chamam a atenção da Manuela que logo vai ao seu encontro. Rapidamente, uma educadora convida as crianças a retornarem ao espaço de mesa e a explorarem os materiais dispostos. Manuela senta na cadeira perto da mesa e pega uma lata que foi colocada em pé na sua frente. Ela vira a lata e a rola na direção de Pedro que também já havia se sentado.
Manuela – ‘’Pega! Oh! ‘
Pedro – ‘’Caiu! Bum! ‘’
Pedro e Manuela acham graça da lata que rola e cai no chão fazendo mais barulho. Chega a educadora, pega a lata e a coloca na mesa, senta ao lado de Manuela, em frente ao Pedro e começa a mexer na tinta verde.
Educadora – “Olha a tinta verde, vamos passar a trincha e molhar na cor verde? Vamos pintar a lata?”
As crianças insistem em explorar os materiais expostos de diferentes formas. Passam a mão nas cerdas da trincha molhada de tinta verde, explorando o material tinta e cerdas. Em seguida, largam a trincha e começam a esfregar uma mão na outra e estas começam a ficar pintadas e molhadas de tinta verde. Outra criança pega um batedor e começa a batucar na lata, sem molhar na tinta, explorando o barulho. Pedro vira a sua lata, olha para a Manuela, sorri e empurra a lata de volta para ela. Manuela segura a lata com as mãos de tinta verde e a empurra de volta, deixando as marcas de sua mão, molhada de tinta, no objeto.
Quando o adulto consegue identificar o interesse das crianças pelo material lata, começa a virar a tinta das bacias na mesa e a passar a mão na tinta, pintando a mesa com as cores como convite às crianças fazerem o mesmo movimento. Quando o adulto consegue ficar no lugar de observador das ações e interesse das crianças, começa a retirar os pincéis e bacias da mesa abrindo espaço para a exploração da tinta com as mãos.
Educadora – ‘’Vamos brincar com a tinta? Vamos brincar com as latas?’’ A educadora começa a bater nas latas e a rolar as latas sob a tinta:
Educadora – ‘’Olha ela faz barulho! Vamos fazer barulho! Vamos rolar as latas? Vrum! Segura a lata Tomás, rola para o amigo!’’
As crianças olham atentas para educadora e alguns começam a bater nas latas com as mãos sujas de tinta, outros começam a rolar as latas um para o outro. Manuela e Pedro partilham da brincadeira com uma única lata e entram em um jogo, diálogo de risadas e olhares. Um grito, um sorriso, rola a lata. Um grito, um sorriso, rola a lata. Algumas crianças começam a se dispersar e são convidadas a lavar as mãos, no lavatório ateliê. A educadora se dirige ao lavatório com três crianças e as ajuda a lavar as mãos enquanto a auxiliar se dirige ao espaço do ateliê de chão e almofadas para iniciar a narrativa da história Cadê meu travesseiro, de Ana Maria Machado. Pouco a pouco, as crianças que já haviam lavado as mãos vão se aproximando da contação de histórias e ocupando um lugar próximo à educadora.
Nessa observação podemos dizer, segundo a teoria de Piaget, que as crianças se encontram no estágio sensório motor ou prática (anterior a linguagem), das regulações afetivas elementares e das primeiras fixações exteriores da afetividade (PIAGET, 1976, p.13).A evolução do espaço prático é inteiramente solidária com a construção dos objetos e que, ao final do segundo ano de vida, a elaboração do espaço é devida e essencialmente, à coordenação de movimentos, que une este desenvolvimento ao da inteligência sensório motora.
A causalidade e intencionalidade aparecem nos momentos em que as crianças interagem com o objeto (lata), seja batendo e ouvindo o som, sentindo as cerdas do pincel com as mãos, ou rolando a lata. Ressaltando que nessa fase a criança reconhece as relações de causalidade dos objetos entre si, objetivando e especializando as causas.
Também é por volta desta fase do desenvolvimento que a imitação, sensório motora está em progresso e que a imitação dos sons tem uma evolução semelhante, associando os sons a ações determinadas. Esta fase fica clara na observação I, quando uma criança faz um som ao rolar a lata para outra criança e repete o mesmo som para que o movimento seja refeito.
Esse momento é um exemplo de linguagem espontânea entre crianças, demonstrando as primeiras condutas sociais, ressaltando assim, a influência direta da linguagem na socialização.
Nesta atividade também é possível observar que as crianças constroem suas próprias regras nas interações entre elas e com o meio e, que na maioria das vezes, por conta do tempo e pressa, essa expressão curiosa da criança não é vista pelo educador. Em muitos espaços de creches e pré-escolas, os educadores estão concentrados no produto, dificultando a observação e reconhecimento do processo como aprendizado, esperando que as crianças pequenas apresentem resultados semelhantes. “Quando isso ocorre, a necessidade essencial da criança está sendo desrespeitada pois, nessa fase, ela precisa tocar tudo que encontra, experimentar as diversidades de materiais, explorar o mundo segundo seus próprios desejos e possibilidades e se expressar com liberdade” (FALK, 2008).
O olhar sensível, de maravilhamento das descobertas, permitirá ao adulto ver além, reconhecer o sujeito aprendiz nas suas intrincadas experiências sobre o mundo. Segundo a abordagem Pikler, não se deve esperar que todas as crianças façam a mesma coisa, no mesmo ritmo, ou deixar que elas esperem uma ordem dos adultos para iniciar uma proposta. “Quando é permitido que a criança aja por iniciativa própria, ela vai, inevitavelmente, se deparar com os limites que a realidade impõe” (SOARES, 2017).
Estar atento a estes processos e as iniciativas das crianças, interferindo apenas quando necessário, é colocar a criança no centro do processo de aprendizagem e deixar guiar-se por elas. Educar para liberdade é dar espaço para a criança SER.
Romper com as amarras das pedagogias diretivas e das memórias vívidas de uma escola do fazer, não é tarefa simples nem fácil. Exige coragem e disponibilidade. Coragem de assumir nossos não saberes e disponibilidade para aceitar os desvios e imprevistos. Sair do papel de diretor de cena para observador e pesquisador é um exercício contínuo, exotópico e alteritário. Difícil, mas necessário, pois somente dessa forma seremos capaz de transformar a “escola de ensino em uma escola de aprendizagem” (RINALDI, 2013).
Cabe ao educador garantir a integridade física das crianças, sem limitar seus movimentos, mas respeitando seu ritmo interno e promovendo espaços de investigação instigantes que convidem aos movimentos livres, favorecendo a possibilidade de escolhas e decisões das crianças, sobre o que e como agir no mundo, facilitando a construção de identidade e autoestima e fortalecendo os vínculos afetivos com os espaços e grupo. “[…] porque a escola não é uma preparação para a vida, mas é um pedaço da vida. A escola pode ser uma maneira honesta de viver a vida” (Bruner, notas de uma conversa com um grupo de educadores em Reggio Emília, julho 1999).