“TODAS AS MÃES VOLTAM”, PENSAMENTO, LINGUAGEM E AFETO.
“TODAS AS MÃES VOLTAM”, PENSAMENTO, LINGUAGEM E AFETO.
Em um espaço com crianças de 3 e 4 anos a educadora propõe atividades de grafismo com diferentes riscadores.
Em uma mesa com quatro crianças, duas crianças começam a dialogar sobre os desenhos que estão fazendo. Ana de 3 anos e Dani de 4 anos.
Ana – ‘’Vou desenhar a minha mãe. Ela é grande e tem rabo de cavalo.’’
Dani – ‘’Vou desenhar a minha mãe também. Ela tem o braço comprido e me aperta assim.’’ Dani larga o riscador e entrelaça os próprios braços entre si.
Ana – ‘’Estou com saudade da minha mãe.’’ Ana começa a demonstrar certo desconforto com a lembrança de sua mãe e sua expressão começa a ficar mais entristecida.
Dani-‘’ Não fica triste não, ela vai voltar mais tarde, todas as mães voltam.’’
Dani – ‘’Vamos desenhar mais? Vou pegar mais uma folha.’’ Dani levanta e vai até a estante onde se encontram as folhas de papel dispostas na cesta. Dani pega apenas uma folha.
Dani -‘’Vou desenhar agora o meu pai. Desenha aqui seu pai. ‘’ Dani desenha o pai e vai convidando Ana a desenhar seu pai também na mesma folha.
Ana – ‘’Meu pai tem barrigão grandão.’’
Dani – ‘’Faz barrigão aqui. Meu pai é pequeno.’’
Ana – ‘’Meu pai é grandão! ‘’
Dani- ‘’Vamos brincar no quintal?’’
Ana – ‘’Está chovendo!’’
Dani- ‘’A chuva é devagarinho.’ ’Assim as crianças vão dialogando e compartilhando a folha de papel e o riscador.
Nesta atividade foi possível observar como as crianças socializam respeitando a cultura de pares costuradas no meio em que estão inseridas. Segundo o sociólogo Corsaro (2011), é na busca por ressignificar o mundo adulto que as crianças criam seu mundo próprio ou da cultura de pares.
As culturas de pares não são fases que cada criança vive. As crianças produzem e participam de suas culturas de pares, e essas produções são incorporadas na teia de experiências que elas, crianças, tecem com outras pessoas por toda a sua vida (CORSARO,2011, p.39).
Na concepção de Vigotski, enquanto a criança desenha, a criança pensa no objeto que está representando, como se estivesse falando dele (SMOLKA, 2010). No caso descrito acima as crianças verbalizam e compartilham seus conhecimentos e emoções sobre o objeto imaginado. Elas desenham o que sabem sobre o objeto, o que sentem e não o que veem.
Através da troca de experiências de linguagem e de afeto, na relação entre as crianças, no momento de grafismo, é possível observar progresso e aprendizagens, não apenas cognitivas, mas emocionais e motoras, refletidas através do desenho apresentado.
Para Vigotski, a mediação seria realizada por elementos que ele distingue em dois tipos: os instrumentos e os signos. Os instrumentos são elementos externos (sociais) que o homem busca com uma determinada finalidade procurando transformar, de forma mais ampla a natureza; e os signos são orientados para o próprio indivíduo, na busca de soluções de problemas de origem psicológicas (escolher, decidir, comparar, lembrar, etc…)
Portanto, são as características tipicamente humanas que possibilitam o homem de atuar e reelaborar novos conceitos, interpretá-los e redirecioná-los na interação e relação com o real. (KRAMER, 1997, p.103,104).
Sendo assim, as conversas descritas dialogam diretamente com duas funções básicas da linguagem segundo Vigotski: intecâmbio social e pensamento generalizante. “Qualquer inventor, mesmo um gênio, é sempre um fruto de seu tempo e de seu meio” (VIGOTSKI, 2010).
A intencionalidade humana é o âmbito, em nós, ao qual ansiamos, sempre retornar, mas que sofre influência devastadora da pressa em nosso tempo. Reconhecemos esse âmbito, tão importante como o recém-nascido em nós – que, como tal, precisa de cuidado e acolhimento. A correria do dia a dia muitas vezes impede que o acolhamos. A pressa evita os contatos mais profundos, as conversas mais intensas, os reais encontros e, assim, impede que aprendamos. Ninguém é tão grande que não possa aprender, nem tão pequeno que não possa ensinar (MEIRELLES, 2017, p.79).
Sendo assim, a brincadeira tem papel fundamental no processo de autoconhecimento e criatividade, na trajetória de nos tornarmos plenamente humanos. Se bem observadas, as brincadeiras trazem a real presença, o encontro entre passado e futuro, transformando o tempo no presente momento. Segundo Vigotski (1998) o lúdico torna a possibilidade de enfrentamento do real e das dificuldades, desempenhando papel fundamental no desenvolvimento da criança pois colabora para que estas trabalhem sua relação com o mundo dividindo espaços e experiências. “O jogo da criança não é uma recordação simples do vivido, mas uma transformação criadora das impressões para a formação de uma nova realidade que responde às exigências e inclinações dela mesma” (Vigotski, 1979, p.12).
As interações observadas incitam uma reflexão sobre os sentidos e significados do brincar. O que comunica a linguagem do brincar? Qual o papel do professor nas interações sociais infantis? As crianças são especialistas na forma mais completa de escuta, pois a relação que as crianças pequenas travam com o mundo ao seu redor, exemplifica de forma simples a intensidade na qual elas se dispõem a entender e compreender tudo ao seu redor.
Nesse processo, a documentação pedagógica atua como contorno de nossas ações e discursos. Ela nos ajuda a romper paradigmas que foram enraizados ao longo do nosso percurso de formação e que necessitam de visão crítica para serem reconstruídos e ressignificados. De todo modo, muitos são os desafios na hora de transformar a nossa reflexão em ação, abster-se de julgamentos e preconceitos; permitir que o movimento de alteridade seja pleno e que de fato seja um espaço de ouvir a si próprio e ao outro em tempos próprios; disponibilidade para ver e ouvir o que nem sempre é audível a todos; optar por duvidar de nossas certezas e desconstruir paradigmas cotidianamente. “A essência do brincar não é um fazer ‘como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’. Transformação da experiência mais comovente em hábito” (BENJAMIN, 1984, p.102).