Como a documentação pedagógica pode transformar professores e crianças em autores de suas histórias
Quando eu era mais jovem, participar de um seminário ou curso sem meu caderno de anotações era motivo de angústia. O bloco e a caneta eram meus aliados, e até hoje, sempre que organizo um encontro formativo, faço questão de disponibilizá-los. No entanto, nos últimos tempos, venho observando algo curioso: esses dois objetos, antes indispensáveis, parecem ter se tornado quase desnecessários para a maioria dos participantes.
Num primeiro momento, confesso que me questionei: será que minhas falas e propostas não estavam despertando interesse suficiente para merecer sequer uma anotação? Com o tempo, observei outros congressos e conferências, dos quais participei apenas como espectadora, e percebi o mesmo padrão. Poucos registravam. Poucos escreviam.
O que estaria acontecendo?
Será que ler, escrever e anotar para revisitar depois está se tornando obsoleto?
O mais intrigante é que muitas dessas formações giravam justamente em torno da
pedagogia da escuta e da documentação pedagógica.
Como explicar a contradição de
educadores interessados nesses processos não praticarem a escrita e o registro?
ainer Maria Rilke dizia que “as coisas não são tão compreensíveis nem tão fáceis de
expressar quanto geralmente nos fizeram crer”. Para ele, muitos acontecimentos da vida
cotidiana nos atravessam de modo tão profundo que as palavras não conseguem
alcançá-los. Por isso o poeta os comparava a obras de arte: inexprimíveis, mas cheias de
sentido.
Ao ler o mundo, fazemos um movimento de fora para dentro. E esse gesto, que parece
simples, exige escuta, atenção e presença. A leitura provoca fricção: não é um ato liso, sem
resistência. Ela gera atrito entre aquilo que já sabemos e o novo que nos atravessa. Esse
atrito pode causar desconforto, inquietação e até silêncio — mas é justamente ele que abre
frestas de pensamento e nos move para além do óbvio.
Se ler exige fricção, escrever exige coragem. Escrever o mundo é uma forma de deixar
marcas, de assumir escolhas, de se reconhecer como autor. É assumir o compromisso de
se expor — com nossas ideias, fragilidades, sonhos e contradições.
Talvez por isso, em tempos contemporâneos em que tantos buscam “receitas prontas” para
tudo, escrever se torne um desafio. A escrita não se resume a registrar; ela implica um
mergulho interior, uma escuta sensível de si. É preciso parar para sentir, para reconhecer
desejos, para organizar pensamentos. E abrir espaço também para as nossas fragilidades.
Mas não fomos educados assim.
Lembro-me, quando criança, das professoras pedirem redações sobre “as férias”. No
entanto, não parecia importar o que de fato tínhamos vivido ou sentido. O que interessava
era apenas a pontuação correta, o alinhamento dos parágrafos. A sensação era de que a
minha narrativa pouco valia — e isso empobrecia não só o texto, mas o próprio sentido de
escrever. Escrever… para quê?
Práticas de leitura na escola: o que oferecemos às crianças?
E aqui fica a provocação: quais práticas de leitura e escrita promovemos às crianças na
escola?
Será que criamos oportunidades para que elas experimentem perplexidade, assombro,
desconforto, criação? Ou apenas oferecemos “conteúdos mínimos” para que se tornem
leitores mínimos, como alerta a escritora Graciela Montes?
Se acreditamos que a função da escola é ajudar as crianças a construir sentido e
significado ao que fazem, precisamos lembrar da lição de Emília Ferreiro: enquanto
continuarmos apostando apenas em métodos, o analfabetismo funcional seguirá
avançando.
Para romper com essa lógica, é necessário incorporar no cotidiano a cultura letrada em toda
a sua complexidade — uma cultura que acolha mais perguntas do que respostas, mais
caminhos abertos do que verdades prontas.
Uma escrita que escuta
Escrever é mais do que organizar palavras no papel. É um ato de escuta: do mundo, do
outro e de nós mesmos. Uma escuta que pede silêncio, tempo e presença. Uma escuta que
nos ajuda a nos compreender e a compreender a vida que nos atravessa.
Se a leitura provoca atrito e deslocamento, a escrita é o gesto que transforma esse atrito em
marca, em memória, em autoria.
A pergunta que fica é: estamos, como educadores, oferecendo às crianças espaços para
viver a leitura e a escrita como experiências estéticas, éticas e criadoras? Ou continuamos
aprisionados na ideia de que ler e escrever é apenas cumprir tarefa?
No entanto, os professores também precisam fazer as pazes com essas linguagens-talvez
esteja aqui uma chave importante para formar leitores e escritores competentes. Escrever ,
registrar, documentar não como burocracia, mas como prática de autoria e de escuta.
Escrever é, no fundo, um convite para nos tornarmos responsáveis por aquilo que
pensamos e sentimos.
Não é à toa que, na filosofia de Reggio Emilia, a documentação pedagógica é considerada
a ferramenta estruturante: porque ela nos ajuda a ver, a dar sentido e a construir memória
coletiva. É o primeiro passo para que a escola seja, de fato, um espaço de leitores e escritores plenos — adultos e crianças.