Tenho pensado muito sobre a palavra intencionalidade. Ela vem do latim intentio, que significa dirigir-se a algo, tender para um sentido. É uma palavra que contém movimento — o impulso da flecha e o olhar do arqueiro.
Mas, na educação, essa flecha não busca o acerto: busca o encontro. Ser intencional é agir com consciência, ética e sensibilidade diante do que se revela no cotidiano da escola. É compreender que cada gesto — do olhar ao planejamento — carrega em si uma escolha.
o instante de tomada de decisão em que o professor articula duas dimensões que, à primeira vista, parecem distantes —
o que as crianças precisam e o que as crianças se interessam.
Nesse movimento, o educador se desloca do lugar de quem conduz para o de quem observa, exercitando a alteridade como prática de escuta.
Porque é justamente a escuta que dá sentido ao fazer,
orienta as escolhas e transforma o cotidiano em um território vivo de pesquisa
Como dizia Paulo Freire, ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando. E é justamente por isso que o registro — esse ato aparentemente simples de anotar, observar e refletir — se torna uma ferramenta de emancipação.
Registrar é educar o olhar para ver o mundo de forma crítica.
É escrever para compreender-se, interrogar-se e, ao compreender, transformar. É um gesto ético, estético e político que devolve ao professor a autoria e o poder de ler o próprio fazer.
Como nos lembra Freire, a leitura do mundo antecede a leitura da palavra — e é pela prática do registro e interpretação do vivido que nos tornamos autores de nossa própria pedagogia.
A intencionalidade não se faz apenas de planos fechados.
Ela se faz também de sonhos e improviso.
No entanto, improvisar não significa fazer de qualquer jeito ou sem planejamento. Pelo contrário: improvisar é acolher o inesperado e incorporar suas nuances. Reconhecer o imprevisto exige um planejamento profundamente organizado e consciente.
É aqui que me recordo de Loris Malaguzzi e de sua ideia de projetação: planejar não como quem deseja controlar, mas como quem projeta um percurso aberto, capaz de incorporar os acontecimentos e os imprevistos da trajetória
sem perder de vista o horizonte do que se deseja alcançar.
Não à toa, Malaguzzi comparava o papel do professor ao mito do Fio de Ariadne — aquele que guia o caminho sem determinar o destino.
Projetação é planejar com flexibilidade, com escuta, com coragem de recomeçar. É o equilíbrio delicado entre direção e improviso — entre rigor e acolhimento — onde a escola deixa de ser um roteiro fechado e se torna uma obra em processo, co-construída lado a lado com quem vive o cotidiano: adultos e crianças. Porque uma pedagogia viva se faz na relação, na negociação de sentidos, no olhar que reconhece o outro como parte da criação.
Há sempre um desafio silencioso entre o que as crianças se interessam e o que elas precisam.
As infâncias são movidas por curiosidades múltiplas — tudo é descoberta, tudo é novidade. Para reconhecer as verdadeiras pesquisas das crianças, precisamos de tempo e presença:
de uma escuta que saiba observar sem julgar;
de uma atenção que perceba o que retorna, o que insiste, o que pede continuidade.
É o olhar fenomenológico que nos permite enxergar padrões, compreender ritmos, reconhecer intenções.
Isso exige rigor e metodologia:
descrever para compreender, documentar para escutar de novo;
interrogar o que se vê até que o invisível se revele.
É nesse exercício que o educador aprende a distinguir o efêmero do essencial.
O espaço como terceiro educador
Ser educador é também aprender a sair do papel de diretor de cena para habitar o lugar de observador.
Quando faço isso, o espaço ganha voz e se torna o terceiro educador — um organismo vivo que fala pelas luzes, pelas texturas e pelos silêncios. É nesse diálogo entre corpo, tempo e matéria que nasce uma verdadeira pedagogia da escuta, onde o professor revela a potência da infância e se revela como pesquisador de humanidades.
Autoridade, conhecimento e cuidado
No percurso da intencionalidade, redescobrimos o verdadeiro sentido de autoridade. Exercer autoridade não é impor: é assumir responsabilidade.
A palavra vem de auctoritas, o mesmo radical de autor — aquele que faz crescer.
Ser autoridade é tomar decisões fundamentadas em conhecimento e ética, interpretando o cotidiano com base nas ciências que sustentam nossa prática — a pedagogia, a psicologia, a filosofia, a sociologia, a biologia —
porque educar é lidar com o ser humano em sua inteireza:
cognitiva, afetiva, motora, social e política.
É reconhecer que a escola é, antes de tudo, um espaço de aprendizagem, e que o professor é responsável por criar as condições para que o aprender floresça.
Documentação: a metodologia da intencionalidade
A documentação pedagógica é o fio que costura tudo isso.
Ela não é apenas um registro do que aconteceu,
mas um modo de pensar — uma ferramenta poderosa que rompe discursos opressivos, revela concepções, organiza, dá sentido e forma à intencionalidade.
Documentar é praticar o que Freire chamava de leitura do mundo:
olhar para o vivido e reconhecê-lo como texto;
analisar o cotidiano para reinventar a prática;
escrever para compreender e compartilhar saberes.
Documentar é, portanto, um exercício de autonomia e autoria.
E é também um ato de esperança —
porque, ao registrar, o professor acredita que o que acontece na escola vale ser narrado. E tudo o que vale ser narrado, vale ser vivido e transformado.
Uma escola que se escreve junto
Sim, é complexo.
Mas não é complicado.
É um caminho que exige organização, escuta e presença.
Um exercício constante de reconexão com o ato criativo,
com a capacidade de se surpreender, de se deixar atravessar pelos acontecimentos.
Como diz Jorge Larrosa, trata-se de viver experiências que me acontecem, e não apenas que me passam.
E é nesse horizonte que a arte e a pedagogia precisam caminhar lado a lado — porque é a dimensão estética que nos ensina a escutar o mundo com o corpo inteiro.
A intencionalidade, afinal, é a alma da prática docente.
É o fio que une saber, sentir e fazer —
e pode ser aprendida e cultivada na prática da documentação pedagógica.