A Linguagem do Barro e os Rastros da Ancestralidade: a despedida de Niede Guidon

Arqueóloga de renome internacional

Recentemente nos despedimos de Niéde Guidon, arqueóloga de renome internacional, referência na preservação do patrimônio arqueológico do Brasil.

Sua trajetória se entrelaça com a Serra da Capivara, no Piauí, onde deixou um legado que pulsa entre pedras, pinturas rupestres e histórias milenares.

Arqueóloga de renome internacional

Tive a oportunidade de conhecer esse território sagrado durante uma formação com mais de 150 educadores da infância, em São Raimundo Nonato. Aos pés da Serra, abrimos um tempo-espaço de escuta, memória e reconexão. Em ateliês com a linguagem do barro, tocamos o solo e, ao mesmo tempo, fomos tocados por ele.

Ao moldar a argila com as mãos, educadores revisitaram suas próprias infâncias, narrativas e histórias silenciadas. Foram momentos de evocação e cura, onde elementos cênicos nasceram do encontro entre corpo, memória e matéria. Histórias ganharam forma. E, com elas, emergiu também uma pergunta que nos atravessa: que concepções nos habitam quando falamos com e sobre as crianças?

Muitas vezes dizemos com os lábios uma coisa, mas com as ações sustentamos outra. A formação foi também esse lugar de desvelar contradições, olhar para crenças enraizadas e repensar a nossa forma de estar com as infâncias.

Cultura, transmissão e transformação

Falamos sobre cultura, transmissão e transformação. E sobre a importância — como dizia Hannah Arendt — de exercer a autoridade, não como opressão, mas como compromisso ético de sustentar o mundo para que as crianças possam atualizá-lo. Ser autoridade sem ser autoritário requer coragem para desconstruir o que nos moldou. E foi exatamente isso que o barro nos ensinou.

Ao mexer, remexer, desfazer e refazer, emoções vieram à tona. Medo, angústia, apego... tudo aquilo que sentimos diante do novo. A argila, ancestral e presente, foi nossa mestra. Nos deu repertório para reconfigurar a prática. Nos permitiu acessar camadas profundas da escuta e da imaginação pedagógica. Porque brincar com o barro é também narrar o mundo, dar forma à experiência e ativar a potência criadora que mora em cada um de nós.

E tudo isso, no coração de um território marcado por registros milenares — provas vivas de que o ser humano sempre precisou contar suas histórias, deixar marcas, afirmar: eu passei por aqui.

Quais marcas, memórias e narrativas estamos permitindo que as crianças construam em seu cotidiano? Estamos abrindo espaço para que elas nos mostrem como enxergam o mundo? Ou ainda estamos apenas tentando “ensiná-las” a ver como nós?

A Serra da Capivara me transbordou e transformou.

Lembro do impacto de ver, diante dos meus olhos, o registro rupestre do Beijo — símbolo de ternura e humanidade. A menina curiosa que fui reencontrou ali um ensinamento simples e profundo: para cuidar, é preciso conhecer. Para preservar, é preciso amar.

Talvez esse seja o maior legado de Niede Guidon: nos lembrar que conhecer a história é uma forma de amar o mundo. E que o conhecimento, quando caminha lado a lado com a arte, transforma-se em experiência viva, em letramento científico sensível, em educação que toca a alma.

Que possamos sustentar esse chão fértil para as crianças de hoje — com escuta, barro, poesia e presença.