Brincar é do mundo — não do museu

É bonito ver valorizado o direito a sonhar.

Durante minha passagem por Los Angeles, visitei o Cayton Children’s Museum, um espaço vibrante que convida crianças a explorarem, criarem, tocarem e sonharem com o corpo todo. Logo na entrada, uma frase me atravessou:

“You have the right to imagine a better world.”
Você tem o direito de imaginar um mundo melhor.
É bonito ver valorizado o direito a sonhar. Mesmo assim, algo me inquietou…

É bonito ver valorizado o direito a sonhar.

Será esse o futuro do brincar — confinado apenas a espaços pagos, mediados por curadorias adultas, controlados por regras e horários?

Estamos, sem perceber, colocando o brincar dentro de museus?

Como se a imaginação fosse um espetáculo raro, digno de exposição. Como se brincar fosse exceção — e não direito cotidiano.

Brincar é o que nos faz humanos

O Cayton é um lugar encantador. Mas também é um espelho: ele nos revela o quanto nossa sociedade tem deixado de garantir tempo, espaço e liberdade para o brincar acontecer fora dos muros. Como se a infância precisasse de um ingresso para existir em plenitude.

O brincar é manifestação do ser. É linguagem. É investigação profunda do mundo. Não deveria ser privatizado, nem controlado por agendas adultas. Deveria ser protegido como um ritual diário de existência.

Como nos lembra Freud, o melhor brinquedo é a nossa imaginação. E nada sustenta melhor a imaginação do que estar com e na natureza. É do lado de fora — nos quintais, nas praças, nos galhos e gravetos — que as pesquisas mais genuínas acontecem. É ali que o corpo aprende, que o risco vira coragem, que o erro vira invenção.

Materiais simples do cotidiano, da vida em si, são os verdadeiros provocadores da cultura. Eles alimentam o imaginário, criam pontes entre gerações e possibilitam às crianças atualizarem os modos de estar no mundo.

Museus: sim, com arte e infância — mas não como única morada do brincar

É importante dizer: os museus devem, sim, ser pensados como espaços para bebês e crianças. Espaços onde as infâncias possam ampliar suas lentes culturais, experimentar diferentes linguagens artísticas, entrar em contato com o sensível.

Mas o brincar não pode estar reduzido a ambientes controlados. Esse tipo de atitude não só explicita nossas concepções, como revela o desejo de sociedade que sustentamos. Uma sociedade que associa infância ao consumo e ao espetáculo, e não ao tempo de viver com liberdade e dignidade.

Uma educação para a democracia e para a liberdade exige que a estética caminhe ao lado da ética. Exige que possamos formar sujeitos capazes de refletir, imaginar e transformar — desde cedo. E, para isso, o brincar precisa de solo fértil e tempo inteiro.

Vale ressaltar que apesar das contradições, há algo no Cayton que merece destaque — e talvez seja seu maior gesto político:

É proibido o uso de celulares pelos adultos. Nada de fotos. Nada de vídeos. Não apenas para preservar a intimidade das crianças, mas para educar o olhar dos adultos.

Ali, somos convidados a sair do modo automático e observar — com presença — os gestos, os silêncios e os deslocamentos das infâncias.

Mais do que um museu para crianças, um museu para adultos. Um espaço de reeducação do olhar, de reaproximação com o tempo da infância. Porque antes de criar brinquedos complexos, é preciso refinar a escuta. Antes de oferecer experiências instagramáveis, é preciso estar inteiro.

Pensemos então esse espaço como um convite ético, estético e político

Proteger o brincar é proteger a liberdade. É sustentar a infância como modo de ser no mundo. É garantir que a imaginação não precise de senha de acesso, nem de espaços controlados para florescer.

O museu pode ser um abrigo, um provocador, um lugar de encantamento e cultura. Mas o brincar deve ser rua, vento, chão. Deve estar na escola, em casa, na cidade, nos encontros.

Será preciso pagar para imaginar? Será preciso visitar um museu para viver o que é direito? Que espaços como esse nos inspire, sim. Mas que também nos convoque a reconstruir o mundo do lado de fora — onde o brincar, livre e potente, acontece todos os dias. Sem plateia. Sem roteiros.

Apenas com o corpo, o tempo e o mundo à disposição da infância.