Brincar não é apenas um direito da criança; é uma linguagem ancestral, uma maneira profunda de se relacionar com o mundo.
Observar uma criança brincando é testemunhar o pensamento em movimento, a poesia escrita com gestos e rastros. Trata-se de um fenômeno que, como defende Lev Vigotski, articula-se com o desenvolvimento das funções psicológicas superiores: imaginação, simbolização e pensamento abstrato.
Para além do desenvolvimento cognitivo, o brincar é também um campo de investigação estética e simbólica. Vigotski já afirmava que a imaginação é um instrumento fundamental para a criação cultural. Quando a criança brinca, ela cria mundos, assume papéis, negocia significados e constrói realidades. Essa concepção é aprofundada por Loris Malaguzzi, que ensina que as cem linguagens da criança são formas legítimas de conhecimento. No ateliê, essas linguagens ganham corpo e cor, sustentando o pensamento enquanto se expressam no fazer.
Um exemplo revelador: um menino que, sem conseguir explicar por que as folhas caem, traz as folhas nas mãos e diz: “Trouxe pra você ver.” Um gesto de pesquisa, de abertura ao mistério, que demanda uma escola capaz de escutar. Donald Winnicott nos alerta que, para brincar, a criança precisa se sentir segura. Só no espaço potencial de confiança e acolhimento é que ela se entrega ao jogo simbólico. Assim, o brincar exige adultos que escutem com o corpo inteiro.
A educadora e pesquisadora Lydia Hortélio, ao falar da cultura da infância, recorda que o brincar é respiração da alma e da vida. Suas canções, gestos e brincadeiras são passagens para o imaginário coletivo, para uma educação que não se descola da cultura viva dos territórios. Quando a escola ignora o brincar, não apenas silencia a criança — desconecta o sujeito de sua história.
Nesse sentido, o brincar multifacetado é também uma chave para a inovação e qualidade
na educação. Inovar, nesse contexto, não é empilhar tecnologias, mas garantir condições
para que a criança possa imaginar, sonhar e criar. Michel Serres, em “Polegarzinha”,
denuncia a crise da experiência sensível: as crianças estão cada vez mais conectadas a
telas e menos conectadas à natureza, ao corpo, aos afetos.
Richard Louv reforça essa crítica ao cunhar o termo "transtorno de déficit de natureza". Em
A Última Criança na Natureza, Louv adverte que a desconexão com o mundo natural
empobrece a imaginação, a saúde emocional e a criatividade. O brincar ao ar livre, com
materiais não estruturados, torna-se uma forma de reconexão com o sensível — e um gesto
de resistência à cultura do excesso e do consumo.
Brincar como sonho compartilhado
Ao explorar o mito de Cronos e Kairós, emerge a proposta de repensar o tempo da escola: um tempo autoritário que aprisiona, versus um tempo sonhador que escapa pelas frestas. É nesse tempo de Kairós que o brincar acontece. É aí que mora a inovação verdadeira — nos interstícios do planejamento, nos momentos de escuta, nos vazios férteis da rotina.
A cultura do ateliê, inspirada por Reggio Emilia, oferece ferramentas concretas para sustentar essa escuta. Como dizia Vea Vecchi, o ateliê é o lugar onde mãos e pensamento trabalham em sintonia. Documentar as brincadeiras das crianças é mais do que registrar: é afirmar que aquilo tem valor. É reconhecer que ali há pensamento, autoria, sonho.
Formar educadores é, antes de tudo, abrir-lhes os olhos. O brincar das crianças é um
convite para que os adultos também recuperem sua capacidade de maravilhamento. Para
isso, a formação estética é fundamental. Precisamos de educadores que saibam fazer
silêncio, observar uma folha caindo, escutar o som da madeira sendo batida.
Rubem Alves dizia: “Educar é mostrar a vida a quem ainda não a viu.” E como escreveu Manoel de Barros, mestre da infância crianceira: “as coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças.” Que a escola seja, então, esse lugar onde o sem-nome possa emergir, onde o invisível possa ganhar forma, onde seja possível “sonhar longe e inventar perto.”