Há um instante silencioso — quase invisível — em que o gesto se transforma em pensamento.
É quando a criança toca o papel e o traço acontece: um risco, um ponto, uma linha. Ali, onde muitos vêem apenas garatujas, mora um pensamento em ação. O início de uma linguagem que expressa tudo o que o corpo já sabe e ainda não aprendeu a dizer com palavras.
Aprender a ver esse instante é tarefa delicada.
Exige que o adulto desacelere o olhar, que suspenda a pressa de interpretar, que aceite o não-saber.
Porque o desenho como linguagem não é produto, é percurso .
E documentar esse percurso é como acompanhar o nascer de uma ideia — com o mesmo respeito e silêncio com que se observa uma semente germinar.
Rhoda Kellogg, pioneira nos estudos sobre o desenho infantil, dizia que as crianças “falam por linhas”. Cada traço é uma forma de raciocínio; cada espiral, uma narrativa em movimento. Linha para a autora é pensamento vivo. Ao desenhar, a criança organiza o mundo — não para representá-lo, mas para compreendê-lo.
É uma escrita do corpo que pensa, como nos aponta Edith Derdyk. Ao documentar o encontro entre uma ponta e um suporte observamos que a linha nasce do gesto, e o gesto nasce do encontro: mão, papel, corpo, tempo, atenção. Essa é a verdadeira alfabetização na linguagem gráfica — não a que decifra letras, mas a que desperta o pensamento criador. Antes da palavra, a criança pensa com o corpo inteiro. E o corpo, em movimento, é pura linguagem poética.
Atualmente muitas escolas estão em busca de um ateliê - me parece a palavra do momento - mas poucas se debruçam a compreender a necessidade da dimensão estética trabalhar lado a lado com a aprendizagem. Quando falamos da escola como ateliê estamos convidando a sociedade a refletir sobre uma nova forma de se relacionar com o conhecimento - A arte como modo de conhecer e se relacionar com o mundo.
O grande perigo do modismo está no esvaziamento de sentido do fazer ou na banalização do conceito. Porque quando olhamos a arte como ferramenta pedagógica, corremos o risco de domesticá-la.
Mas se a arte for reconhecida como um convite a pensar novos modos de ser e modo de conhecer, ela se torna aprendizado —
ela se confunde com a própria experiência de ser no mundo.
Ferramenta indispensável para tomada de decisão, a documentação é uma metodologia de pesquisa que, a cada etapa do percurso, utiliza instrumentos projetuais diversos que revelam as verdadeiras aprendizagens das crianças.
Nos últimos dias tive a oportunidade de estar na escola Fabulinos, em Buenos Aires, observando e documentando experiências das crianças e educadores no projeto de pesquisa sobre “a linha” . Na FABULINUS o estudo da linha não nasce de um plano de curso, eles compreendem o desenho como uma linguagem e proporcionam as crianças a oportunidade de experienciarem essa gramática . Portanto, diferente de um plano de curso com atividades soltas, o estudo da linha como linguagem nasce de perguntas como:
O que acontece quando a linha se solta do lápis e atravessa o espaço?
Essa pergunta não se responde, se vive.
É nesse território do imprevisível que a documentação se torna necessária —
não para controlar o processo, mas para escutá-lo.
Documentar é capturar o sopro da curiosidade, o instante em que a criança encontra o material e algo se revela.
É interpretar para dar sentido àquilo incrível que, de tão cotidiano, correria o risco de passar despercebido.
O professor que documenta não busca provar nada — busca compreender .
Ele é curador de contextos: prepara o terreno, escolhe os materiais, organiza o espaço, mas sabe que a experiência verdadeira só começa no encontro.
E sabe o que auxilia o professor a escolher os espaços e materiais? A documentação. A documentação, então, é o instrumento que o ajuda a pensar sobre o próprio pensar. Ela revela não apenas o que a criança faz, mas também quem somos diante do que ela faz. Por isso, a documentação antes de tornar visível as linguagens das crianças ela nos forma como professores competentes.
Registrar não é apenas fotografar, ou anotar uma fala ou um gesto, é construir sentido.É aprender a ver o invisível.
É entender que o desenho não está no papel, mas entre o papel e o olhar — no intervalo vivo que se cria quando o adulto decide acompanhar o gesto, em vez de conduzi-lo.
Aprendemos a documentar documentando, mas é preciso entender que esse fazer exige rigor e metodologia de pesquisa.
Diferente de método, a documentação pedagógica não tem receita, tem princípios: éticos, estéticos e politicos e está pautada em 3 aspectos fundamentais de uma aprendizagem negociada: design, discurso e documentação .
Metaforicamente podemos dizer que a documentar é dar tempo ao traço
Tempo para que ele se mostre de diferentes formas e possamos interpretar suas nuances a partir da negociação de sentido.
Vivemos uma época que exige respostas rápidas, mas a infância é feita de lentidões.
Assim como a linha precisa de tempo para acontecer — tempo para errar, repetir, experimentar, as crianças precisam de tempo para construírem significados sobre si e o mundo.
A documentação é a forma que temos de honrar esse tempo. Por isso, Loris Malaguzzi dizia que a documentação pedagógica é a ferramenta mais poderosa para romper com os discursos dominantes.
Ela transforma o efêmero em memória, o gesto em narrativa, a experiência em conhecimento compartilhado.
Documentar é demorar-se.
É olhar de novo.
É descobrir que cada traço é uma pergunta — e que o papel, no fundo, é apenas um espelho que revela os acontecimentos, mas é preciso aprender a ver.
Documentar para formar uma cultura do ateliê
Só é possível formar uma Cultura do Ateliê no chão da escola quando há documentação —
mas não qualquer documentação.
Ela precisa ser intencional, planejada e ética.
Documentar não é sair fotografando tudo o que acontece,
é escolher, com rigor e sensibilidade, o que precisa ser visto para fazer pensar, abrir diálogos, contar histórias, fazer memórias e revelar concepções.
A documentação é o fio que sustenta o cotidiano:
• é ela que orienta a escolha dos materiais e espaços;
• que revela as boas perguntas e guia o olhar do professor;
• que possibilita a continuidade e o aprofundamento das verdadeiras pesquisas das crianças;
• que nos ajuda a reorganizar tempos, agrupamentos e contextos;
• e que nos forma como professores da atualidade — atentos, sensíveis e críticos.
Ela é ponto de partida para a transformação que desejamos no chão da escola.
Uma cultura do ateliê não é um conjunto de práticas estéticas —
é uma nova forma de se relacionar com o conhecimento.
E essa virada de chave só acontece a partir da documentação pedagógica:
aquela que faz ver, escutar, que faz pensar e que nos ensina, todos os dias,
a ser presença e comunicar ao mundo que as crianças são feitas de cem linguagens.