O que as histórias que contamos no cotidiano dizem sobre as infâncias?

Documentação 
Pedagógica

A documentação pedagógica como ferramenta e estratégia para uma prática de escuta.

No primeiro dia da viagem, ao desembarcar no Leste Europeu , comecei a viver a cidade como um grande ateliê. Meus sentidos foram se aguçando diante das ruas, das cores, das texturas, das marcas antigas nas paredes, das comidas, dos gestos, dos materiais encontrados pelos caminhos. Entrei em relação com a cidade e deixei que ela me atravessasse.

Documentação Pedagógica​

Sair do lugar comum me abriu para receber o novo e, ao mesmo tempo, me fez entrar em contato com minhas próprias memórias.

Contato com minha própria memória

Quando cheguei, enfim, à Casa Pikler, a primeira pergunta que me fizeram foi: “Como você conheceu essa abordagem?” . Essa simples pergunta me fez viajar no tempo. Conheci a abordagem há 24 anos, quando minha filha caçula nasceu com hipotonia nos membros superiores. Ao observar atentamente seus movimentos no berço, procurei orientação médica. O pediatra que nos atendeu olhou para mim e disse: “Minha receita para ela é colocá-la no chão” . Ali, sem eu saber, começava o meu encontro com Emmi Pikler.

Reviver essa lembrança em Budapeste não foi apenas recordar um início de estudo;

foi reconstituir um percurso de vida. Lembrei do rigor da observação, da intencionalidade, da paciência que aprendi com minha filha e com a abordagem. Lembrei de como, ao longo dos anos, aquela menina construiu uma boa imagem de si, tornou-se uma adulta criativa, uma escritora, uma designer aberta ao novo, com uma relação positiva com o aprender. Pensei no quanto essa postura frente à vida foi nutrida por oportunidades concretas de movimento, autonomia e confiança — e pelo olhar atento de adultos que acreditaram nela.

Na Casa Pikler, mais uma vez percebi que movimento livre não é ausência de adulto nem improviso. Não basta colocar a criança no chão ou arrumar materiais interessantes e abandoná-la.

É preciso um planejamento rigoroso, uma intencionalidade educativa, princípios éticos, estéticos e políticos que sustentem a concepção de infância. É preciso observar, registrar, devolver à criança suas próprias histórias. Essa é a base de uma documentação pedagógica viva: tornar visível a escuta, dar materialidade à memória do vivido, comunicar à sociedade uma outra narrativa sobre a infância. Documentar é, portanto, um direito das crianças. Emmi Pikler, Loris Malaguzzi e Paulo Freire se encontram nesse ponto: o registro, a observação e a pedagogia participativa como atos de reconhecimento.

As crianças contam suas histórias não apenas com palavras, mas com o corpo, com gestos, com silêncios. Quando registramos, descrevemos e devolvemos às crianças suas narrativas, estamos tirando-as do anonimato, sustentando seu direito à memória e à autoria. E ao mesmo tempo, comunicamos à sociedade — famílias, educadores, comunidade — uma concepção de infância que não se esgota no “agora” , mas que projeta futuros possíveis.

Quando documentamos, não apenas guardamos rastros: revelamos fenômenos.

A documentação e o registro são, ao mesmo tempo, gesto estético e metodologia de pesquisa. É neles que a fenomenologia do cotidiano se manifesta — aquilo que parecia invisível se torna visível, o efêmero se transforma em narrativa. Como lembra Bakhtin, “a palavra é sempre carregada de vozes”: ao revisitar nossas próprias memórias, recontamos nossas histórias de outra perspectiva, incorporando novas vozes para falar da infância. Walter Benjamin, em Rua de Mão Única, dizia ser preciso “escovar a história a contrapelo” — isto é, olhar para o já dado por ângulos inesperados, dar às palavras e às experiências novas texturas e sentidos. Ao “escovar as palavras” na documentação, retiramos o pó das frases prontas, escapamos dos rótulos, deixamos aparecer o que ainda não tinha nome.

Nas pedagogias participativas, a documentação é mais que um instrumento: é um dispositivo ético e político. Ao registrar, descrevemos e devolvemos às crianças suas narrativas e também expomos nossas próprias concepções. A escola, então, deixa de ser apenas um espaço físico para se tornar uma pele viva. As paredes tornam-se segunda pele, carregadas de marcas, desenhos, textos, fotografias — tudo isso revela não só o que as crianças fizeram, mas o que nós, adultos, acreditamos sobre infância.

Félix Guattari nos lembra que os territórios existenciais se produzem na relação com o outro. Documentar é isso: cartografar territórios de infância, reconhecer processos singulares, sustentar a potência do presente e abrir futuros possíveis. Quando tratamos a documentação como fenomenologia viva, transformamos o ato de registrar em um modo de existir com as crianças, em vez de falar sobre elas. É nesse gesto que nossas paredes deixam de ser muros e se tornam espelhos, janelas e membranas — segunda pele de uma escola que respira, escuta e se transforma junto com as infâncias.

E, como ciclo vivo de processos de vida, vejo hoje que aquela criança que um dia foi colocada no chão, amparada pela observação atenta e pela confiança, é a mulher que hoje formata, cuida da identidade visual e viabiliza a comunicação deste texto no blog.

A documentação nos ensina a ser autor da nossa própria história e, ao sentirmos esse prazer, naturalmente promovemos oportunidades no cotidiano para que as crianças vivam autoria em seus processos escrevendo suas próprias histórias.

Seguimos acreditando que vale a pena apresentar o mundo às crianças como lugar de beleza e bem viver. Esse é o ciclo que se retroalimenta: vidas que geram narrativas, narrativas que geram vidas.